31.10.10

cotonetes



por Gisela Schögel

Das poucas lembranças que tenho da minha infância, uma é das minhas plantações de cotonetes. Sim, cotonetes, pois na minha época de criança, não existiam hastes flexivéis. Era só cotonete mesmo e pronto.

Moravámos numa casa grande na Rua Bamboré, no Ipiranga. Eu, meus pais, e meus dois irmãos. Como a filha do meio, sofria os traumas de não ser nem a mais velha, nem o caçula. Ficava sempre com as sobras, inclusive as de amor. E isso nunca me fez mal, pelo contrário, me fez ser todo dia mais doce e mais amorosa. Acho que quanto menos amor você recebe, mais amor você quer dar.

Minha mãe contava que durante a minha gravidez, ela desejou muito uma filha que fosse apegada à ela, pois a minha irmã mais velha fazia a mala sempre que uma visita aparecia em casa, e ia embora, passar a noite, e às vezes uns dias na casa dela.

Então eu nasci. Sei lá porque, era tanto o meu amor pra dar à ela, que acabei sufocando a pobre coitada. Ela contava de boca cheia pra todo mundo ouvir que eu a perseguia pela casa. Acho que de tanto ouvir isso, passei a ter vergonha e medo de sentir e principalmente de falar de amor.

O sentimento, obviamente eu não consegui evitar, mas nunca quis falar de amor pra ninguém, muito menos pra ela. Não falei de amor nem quando senti uma daquelas paixões que te dão a impressão de ter vários corações pulsando ao mesmo tempo dentro de você.

Pouco antes da minha mãe morrer, olhei pra ela e quis dizer, mas não consegui. E não sei porque, eu me lembrei dos cotonetes. Nós tínhamos um jardim lindo, com roseiras na frente da casa, e outro, mais modesto nos fundos. E era num cantinho escondido do jardim mais modesto que eu plantava os cotonetes, bem apertadinhos na terra. Era uma briga quando minha mãe achava os cotonetes. Eu não sei como (hehehe...), mas ela achava e os arrancava, e cada cotonete plantado me custava um dia de castigo. Mesmo assim, eu voltava a plantá-los, na esperança de vê-los brotar. Então, um dia, eu resolvi desistir. Eu achei melhor acreditar que elês não iam mesmo nascer.

E depois da morte da minha mãe, ninguém mais que eu ame vai passar na minha vida sem ouvir:

- eu te amo...

mesmo que seja tímido e bem baixinho...

sobre a autora:

Gisela Schlögel é designer gráfico e web. É formada em Ilustração na Escola Panamericana de Arte, mas de dois anos pra cá se dedica também à fotografia, de onde tira elementos para os seus trabalhos.
É apaixonada por cultura nacional, e quer envelhecer escrevendo biografias.
Além de tudo isso, ainda é admirada por mim por ser tão legal e praticamente da minha família, já que, além de mãe de tantos gatos, é mãe da Chimbica, irmã de sangue da minha gata Chun Li.

para ver seus trabalhos:
www.giza.art.br

30.4.10

cariño ou afago na alma




por Miki W.

ah, a minha infância… teve momentos alegres e momentos tristes, mas, no ‘balanço das horas’, tenho saudades. lembro da lancheira caprichosamente preparada pela minha mãe que era sempre pãozinho francês com uma camaradinha de margarina e salaminho e uma garrafinha [aquela antiga de plástico com copinho atarraxada em cima] de suco de laranja. lembro das botinhas ortopédicas, de pintar as unhas de verde, de ser esquisita [desde pequena], de ser brabicha, de ser tímida, de brincar de bolo de barro na rua com as filhas da vizinha. lembro do alpendre na minha primeira casa da rua padre charton, 22, dos elementos vazados cor de barro e o sol entrando e fazendo desenhos no chão e nas plantas da minha mãe. lembro de um quintal em forma de U com um barrancão ao fundo. lembro da longa escadaria sem parapeito de alvenaria rústica, com areinhas que faziam cosquinha nos pés. lembro da casa da vizinha, d. ebe, de seu filho joão ~ que era o tio preferido de todos os netos ~ e das brincadeiras endemoniadas com a mais endemoniada das netas, a carla.

lembro da rita, minha primeira melhor amiga e das correspondências que trocávamos cada uma em um canto do são paulo, ela na capital e eu no interior. cartas que guardo até hoje. lembro do pé-de-moleque ~ em minha memória maravilhoso ~ que a minha obachan fazia só pra mim. nunca comi nada igual. delicioso e com perfume de infância.

lembro dos meus priminhos mais prediletos, filhos da irmã mais nova da minha mãe que era a única tia que morava relativamente perto de nós quando ainda morávamos ‘na capitar’. eu já era mocinha, eles eram crianças, mas ah! como eu gostava daqueles priminhos.

lembro do quito, meu periquitinho verde que depois foi comido pelo gato do vizinho do meu primo. não me lembro bem porque, mas ele foi embora da minha casa para a casa do meu primo e não durou muito o pobre. teria sido melhor que ele tivesse ficado conosco :(. pobre quito…

lembro da entrada da minha primeira escola, a subida de paralelepípedos, os arcos altos de concreto, as escadarias, as estátuas de santa, a capelinha, o pátio do recreio, a cantina, a pizzinha da cantina e as balas ‘bandinha’ [um veneno só]. lembro do meu primeiro amor, do meu segundo amor e de como tudo foi platônico. sinto nostalgia e saudade.

lembro das festas juninas, dos vestidos caipira, da quermesse, da pescaria no tanque de areia [a minha favorita ever], das prendas que tínhamos que levar para a escola, da quadrilha…

lembro das aulas de música, a professora ao piano. lembro das freiras da escola. da lagartixa que uma delas carregava dentro de um pote de vidro de maionese.

sabichii*…

lembro dos tombos de bicicleta, do lixo atirado ao rio, das aventuras na padaria. ‘502 gramas de mortadela, moço’ ‘500 e… 2?’ ‘sim’ disse eu sem sombra de dúvida. lembro do fura-bolo, do sorvete que tinha chiclé no fundo do copinho e dos ventiladores [antigos] de teto que giravam como hélices de avião e ao redor de si mesmos ao mesmo tempo.

lembro do uniforme cor de vinho, das fotografias anuais no pátio, das festas de aniversário com bolo ‘toalha felpuda’ embrulhados no papel alumínio. eram molhadinhos e tão bom!

lembro do parquinho, dos tanques com muitas torneiras para se beber água, do grande salão com palco onde aconteciam as apresentações de música.

lembro de um dos meus brinquedos favoritos, o telefone ‘bate-papo’ da estrela e de como eu podia me entreter por horas com ele [quer dizer, essa parte eu acho pois não consigo ter lembranças dessa idade tão remota].

ali tudo era tépido e seguro. ali eu me sentia aconchegada, amada, protegida. ali eu me sentia feliz apesar de tudo. ali eu não tinha dúvidas, desespero, ansiedade…

talvez por isso eu sinta tanta saudade. talvez por isso eu tenha uma afeição especial por coisas ‘de criança’. talvez por isso eu continue querendo ser criança para sempre na vida. talvez…

21.abr.2010 ~ 17:53 a 18:41

* sabichii é uma expressão em japonês que decifra uma saudade melancólica, uma falta de não-sei-o-quê, um vazio dentro do peito que parece que não conseguirá ser preenchido por coisa desse mundo.

sobre a autora:

Essa menina fofa no velotrol é a Miki W. Uma pessoa incrível, essa minha amiga linda e eterna companheira de ateliê. Ela é artista plástica, designer e escritora. Muito talentosa e querida, adora inventar palavras novas. Tem mil e um talentos e é prendada que só vendo. Sabe a expressão "mãos de fada"? Acho que foi inventada para ela. Para ver mais sobre seus lindos trabalhos feitos com aquelas mãos de fada, entre aqui:

http://www.flickr.com/photos/mikiw

http://mikiw.blogspot.com


7.4.10

O Sítio e o Cachorro Louco




por Patrícia Kalil


Férias. Sítio de meu pai! Que divertido era passar férias no sítio de meu pai. Dias de peripécias! Assistíamos ao meu pai matar porco, mostrar o passo a passo do cuidado com a horta, achar abóboras gigantes pela plantação.

Ele tinha uma lata velha, enferrujada, misteriosa, que ficava sempre na sala. Dizia que tinha um rato enorme dentro e ameaçava as crianças quando a bagunça parecia incontrolável.

- Cida, pega a lata do rato! Vamos parar com essa zona, senão eu abro…a lata!

Eu morria de medo que ele abrisse. Tinha certeza que desfaleceria só de ver o rato gigante que ele criava lá.

Como a vida não é feita só de hortas e porcos, um dia… aconteceu um acidente. A mulher do caseiro gritou esbaforida:

- Seu Ricardo, um cachorro tá comendo meu marido! Seu Ricardo!!

Todas as crianças (eu, Luciano, Kalilzinho, Amelinha, Ticinha, Tiago, Binho e sei lá mais quem –a casa de meu pai sempre foi cheia de crianças) estavam espalhadas pelo sítio. Uns brincando de fazer bolo de barro, outros brincando de pega-pega, outros de pescar no lago … De repente, ouvi a tia Cida gritar:

- Crianças, venham para cá! Corram! Fiquem! Abaixem!! O pai saiu com o revólver. Tem um cachorro louco solto!

- Do que ela tá falando? Que cachorro louco?, pensei eu.

Bem, movimento e medo geral. Luciano me procurando. Eu procurando Luciano. Meu pai, o caseiro, o cachorro louco, a tia Cida gritando e as outras crianças perdidas.

Na minha imaginação, acho que me meti embaixo da Kombi (hoje, o senso crítico faz com que eu reveja essa parte e pense que, de fato, eu tenha pulado dentro da Kombi). Luciano estava comigo. Ouvimos tiros.

Era a primeira vez -e espero, a única – que o pai saía para matar. Ninguém deveria estar no caminho. Eu pensei: “Ora, por que ele não pegou a lata do rato?” De qualquer forma, na minha memória, meu pai salvou o caseiro, matou o cachorro e enervou o vizinho dono do Dog Alemão.

Sobre a autora:

Patrícia Kalil além de ser essa menina fofa de rosa na boca, é escritora, jornalista, supresa boa do ano passado, companheira de projetos de elevador e amiga querida gêmea-de-cor-olho. Confesso que esta última descrição foi mais por conta de eu querer ter algo parecido com esta moça admirável e linda de tudo que ela é. Aposto que todos adorariam conhecê-la! Para ler e sentir um pouco mais do que ela pensa, sente e vê deste e de outros mundos, entre aqui:

http://www.patriciakalil.com/blog

29.3.10

kindergarten



Texto e foto por Gabriela Cordaro

Ela não falava minha língua. E nem eu a dela. Durante os sete dias em que passei na Áustria, numa cidadezinha de nome impronunciável, uma criança de dois anos foi meu modo de sentir e olhar para o mundo.

Seu nome era Jael, tinha finos cabelos loiros e olhos de um azul brilhante, como não poderia deixar de ser.

Ela estava no kindergarten na manhã em que eu cheguei a sua casa para permanecer ali por mais sete dias. No começo me estranhou. Me acusava de ler os livros da mãe dela, de sentar e dormir na casa dela. Eu tentava me comunicar. Sua língua era um alemão dadaísta que eu tampouco compreendia. Tentava um sorriso e nada, seu olhar de acusação permanecia.

Na noite do primeiro dia, enquanto jantávamos, resolvi pegar na sua mão. Ela aceitou e de mãos dadas percorremos toda extensão da pequena casa em que estávamos até chegarmos a caixa de lápis de cor. Ela, então, me deu papel para que nós duas desenhássemos. E assim fizemos até o momento em que ela foi dormir. Naquele ponto ela já tinha entendido que eu era uma amiga diferente, literalmente de outro país. Ou de outro planeta, quem sabe?

Desenharmos juntas fez de nós duas companheiras. Então, Jael me levava para onde ela ia. Trazia livros de estórias para que eu contasse. Eu as contava em português e ela ouvia atenciosamente. Um dia, como que por milagre, perguntei: "cadê o gato?". Acreditem ou não, ela apontou para o lugar certo do livro onde o gato se encontrava e me fez compreender que entre nós havia outra língua sendo dita e sentida.

Todas as manhãs, ela me acordava com um longo abraço. Mexia na minha corrente cheia de amuletos e me pedia coisas, em alemão. Eu, realizava o que intuía e assim fomos nos dando muito bem.

Um dia ela me pediu algo que não compreendi. Ela, então, pediu a sua mãe; queria que eu a levasse ao kindergarten. Lá fui eu. Jael entrou muito excitada na sala de aula, começou a chamar todos os colegas e lá me apresentou para todos. Eu era o brinquedo que ela acabara de ganhar, um brinquedo muito diferente. Tive de ir, ela ficou frustrada. Mesmo assim me deu um beijo de despedida.

Voltar da escola significava para ela voltar pra mim. E eu confesso que ansiava também por sua volta. De tanto chamá-la de "coisa linda", no aeroporto, quando parti, foi assim que ela me disse adeus, coisa linda! E então, no sétimo dia, Deus inventou a linguagem do coração.
E eu chorei e sorri.

Sobre a autora:

Gabriela Cordaro é atriz e minha irmã do meio. Além de mil virtudes, ainda escreve lindamente. Para ler seus escritos absurdamente incríveis, é preciso acessar uma língua inventada chamada Pídgin, quase essa língua que ela falou com a Jael:

http://pidgininofensivo.blogspot.com


eu recomendo fortemente.

16.3.10

Um menininho lá de Ubá




por Osvaldo Piva

Nasci e cresci no interior de Minas Gerais, em Ubá, terra de Ary Barroso (e Nelson Ned). Como sou o caçula de cinco filhos, brincava um pouco com meus primos, médio com minha irmã “de cima” e muito com meus vizinhos. Nossas brincadeiras aconteciam geralmente na rua, que na época era bem tranquila e com paralelepípedos.

Pique de Esconder

Nenhum segredo, né, mas a gente brincava da seguinte maneira: a pessoa que estava no pique tinha que contar em sua base, virado pra parede, até 30 em voz baixa e em seguida dizer bem alto “31-de-janeiro-lá-vou-eu!”. Daí ele saía para procurar os escondidos. Mas não bastava encontrá-los. Tinha que sair correndo até sua base e bater na parede dizendo o nome do encontrado bem alto: “1-2-3-Fulano!”. O primeiro a ser descoberto estava no pique. Outra curiosidade é que o último escondido podia salvar todo mundo que tinha sido encontrado, bastando para isso chegar à base antes de quem estava no pique, bater na parede e gritar: “1-2-3-salvo-todo-mundo!”. Se isso acontecesse, a pessoa que estava no pique continuava por mais uma rodada.

Bandeirinha Estourou

A gente dividia o grupo em dois e pegava uma bandeirinha – que geralmente era um galho com algumas folhas – para cada time. Funcionava quase como Queimada. No início gritávamos juntos: “Bandeirinha-estourou-1-2-3!”. Cada time deveria defender sua bandeirinha, que ficava sempre atrás da equipe, no chão, em uma área isolada pela imaginação. O objetivo consistia em pegar a bandeirinha do time adversário e levar para o outro lado. Para isso, um dos membros tinha que se arriscar e atravessar o campo do outro time. Se qualquer adversário tocasse nele, ele ficava “colado” e parado como uma estátua no campo “inimigo”. Só poderia ser descolado com o toque de outro da mesma equipe. A área da bandeirinha era neutra, então, se você conseguisse chegar até lá, não poderia ser colado, mas só seria salvo por outro de sua equipe.

Mãe da Rua

Uma turma ficava numa calçada e a outra na calçada oposta. Alguém era escolhido para ser a Mãe da Rua. Não era difícil escolhê-lo, pois a maioria queria ser o pegador. Tínhamos que atravessar para a outra calçada usando um pé só, pulando como o Saci. Imagine pular de um pé só descalço em uma rua feita com paralelepípedos – e imagine falar paralelepípedos o tempo todo com 10, 12 anos de idade! Se a Mãe da Rua te pegasse, você estava fora da brincadeira. Com o tempo incrementamos a brincadeira usando tênis apenas no pé usado para pular. Ficávamos muito tempo com um pé descalço e outro calçado.

Boca de Forno

Geralmente alguém era escolhido pra ser o Mestre – quase sempre a minha irmã “de cima”, que divertidamente abusava do poder de ser mais velha e mestre ao mesmo tempo. Para começar, tínhamos que falar umas palavras de ordem que eram assim:

Mestre: Boca de Forno!

Todos: Forno!

Mestre: O que o Mestre mandar...

Todos: Faremos todos!

Mestre: E se não fizer?

Todos: Ganharemos bolo!

Daí o Mestre inventava coisas absurdas para todos fazerem juntos, tipo “desçam até a pracinha rebolando”, “peçam dinheiro para aquele senhor”, “vá até a cozinha da sua casa e me traga um pedaço de bolo”...

Sítio do Pica-Pau Amarelo

Quase todos os dias, parávamos as brincadeiras na rua para assistir o Sítio do Pica-Pau Amarelo e Globinho, com a Paula Saldanha. Depois voltávamos pra brincar na rua e ficávamos até tarde. Lembro que eu cantava a música de abertura do Sítio assim:

Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau amarelo
Sítio do Pica-Pau amarelo

Bonecário pano é gente, sapo gu de milho é gente
O sol nasce em tché tão belo
Sítio do Pica-Pau amarelo
Sítio do Pica-Pau amarelo

O restante da letra eu não me lembro.

Sobre o autor:

Osvaldo Piva é artista plástico e comparsa de futuros projetos artísticos em deliciosas reuniões de sexta-feira.
Estas memórias, o clima da foto acima e sua origem mineira transparecem num artista talentoso e de conversa muito boa. Para saber mais sobre seu trabalho, clique aqui.