29.3.10

kindergarten



Texto e foto por Gabriela Cordaro

Ela não falava minha língua. E nem eu a dela. Durante os sete dias em que passei na Áustria, numa cidadezinha de nome impronunciável, uma criança de dois anos foi meu modo de sentir e olhar para o mundo.

Seu nome era Jael, tinha finos cabelos loiros e olhos de um azul brilhante, como não poderia deixar de ser.

Ela estava no kindergarten na manhã em que eu cheguei a sua casa para permanecer ali por mais sete dias. No começo me estranhou. Me acusava de ler os livros da mãe dela, de sentar e dormir na casa dela. Eu tentava me comunicar. Sua língua era um alemão dadaísta que eu tampouco compreendia. Tentava um sorriso e nada, seu olhar de acusação permanecia.

Na noite do primeiro dia, enquanto jantávamos, resolvi pegar na sua mão. Ela aceitou e de mãos dadas percorremos toda extensão da pequena casa em que estávamos até chegarmos a caixa de lápis de cor. Ela, então, me deu papel para que nós duas desenhássemos. E assim fizemos até o momento em que ela foi dormir. Naquele ponto ela já tinha entendido que eu era uma amiga diferente, literalmente de outro país. Ou de outro planeta, quem sabe?

Desenharmos juntas fez de nós duas companheiras. Então, Jael me levava para onde ela ia. Trazia livros de estórias para que eu contasse. Eu as contava em português e ela ouvia atenciosamente. Um dia, como que por milagre, perguntei: "cadê o gato?". Acreditem ou não, ela apontou para o lugar certo do livro onde o gato se encontrava e me fez compreender que entre nós havia outra língua sendo dita e sentida.

Todas as manhãs, ela me acordava com um longo abraço. Mexia na minha corrente cheia de amuletos e me pedia coisas, em alemão. Eu, realizava o que intuía e assim fomos nos dando muito bem.

Um dia ela me pediu algo que não compreendi. Ela, então, pediu a sua mãe; queria que eu a levasse ao kindergarten. Lá fui eu. Jael entrou muito excitada na sala de aula, começou a chamar todos os colegas e lá me apresentou para todos. Eu era o brinquedo que ela acabara de ganhar, um brinquedo muito diferente. Tive de ir, ela ficou frustrada. Mesmo assim me deu um beijo de despedida.

Voltar da escola significava para ela voltar pra mim. E eu confesso que ansiava também por sua volta. De tanto chamá-la de "coisa linda", no aeroporto, quando parti, foi assim que ela me disse adeus, coisa linda! E então, no sétimo dia, Deus inventou a linguagem do coração.
E eu chorei e sorri.

Sobre a autora:

Gabriela Cordaro é atriz e minha irmã do meio. Além de mil virtudes, ainda escreve lindamente. Para ler seus escritos absurdamente incríveis, é preciso acessar uma língua inventada chamada Pídgin, quase essa língua que ela falou com a Jael:

http://pidgininofensivo.blogspot.com


eu recomendo fortemente.

16.3.10

Um menininho lá de Ubá




por Osvaldo Piva

Nasci e cresci no interior de Minas Gerais, em Ubá, terra de Ary Barroso (e Nelson Ned). Como sou o caçula de cinco filhos, brincava um pouco com meus primos, médio com minha irmã “de cima” e muito com meus vizinhos. Nossas brincadeiras aconteciam geralmente na rua, que na época era bem tranquila e com paralelepípedos.

Pique de Esconder

Nenhum segredo, né, mas a gente brincava da seguinte maneira: a pessoa que estava no pique tinha que contar em sua base, virado pra parede, até 30 em voz baixa e em seguida dizer bem alto “31-de-janeiro-lá-vou-eu!”. Daí ele saía para procurar os escondidos. Mas não bastava encontrá-los. Tinha que sair correndo até sua base e bater na parede dizendo o nome do encontrado bem alto: “1-2-3-Fulano!”. O primeiro a ser descoberto estava no pique. Outra curiosidade é que o último escondido podia salvar todo mundo que tinha sido encontrado, bastando para isso chegar à base antes de quem estava no pique, bater na parede e gritar: “1-2-3-salvo-todo-mundo!”. Se isso acontecesse, a pessoa que estava no pique continuava por mais uma rodada.

Bandeirinha Estourou

A gente dividia o grupo em dois e pegava uma bandeirinha – que geralmente era um galho com algumas folhas – para cada time. Funcionava quase como Queimada. No início gritávamos juntos: “Bandeirinha-estourou-1-2-3!”. Cada time deveria defender sua bandeirinha, que ficava sempre atrás da equipe, no chão, em uma área isolada pela imaginação. O objetivo consistia em pegar a bandeirinha do time adversário e levar para o outro lado. Para isso, um dos membros tinha que se arriscar e atravessar o campo do outro time. Se qualquer adversário tocasse nele, ele ficava “colado” e parado como uma estátua no campo “inimigo”. Só poderia ser descolado com o toque de outro da mesma equipe. A área da bandeirinha era neutra, então, se você conseguisse chegar até lá, não poderia ser colado, mas só seria salvo por outro de sua equipe.

Mãe da Rua

Uma turma ficava numa calçada e a outra na calçada oposta. Alguém era escolhido para ser a Mãe da Rua. Não era difícil escolhê-lo, pois a maioria queria ser o pegador. Tínhamos que atravessar para a outra calçada usando um pé só, pulando como o Saci. Imagine pular de um pé só descalço em uma rua feita com paralelepípedos – e imagine falar paralelepípedos o tempo todo com 10, 12 anos de idade! Se a Mãe da Rua te pegasse, você estava fora da brincadeira. Com o tempo incrementamos a brincadeira usando tênis apenas no pé usado para pular. Ficávamos muito tempo com um pé descalço e outro calçado.

Boca de Forno

Geralmente alguém era escolhido pra ser o Mestre – quase sempre a minha irmã “de cima”, que divertidamente abusava do poder de ser mais velha e mestre ao mesmo tempo. Para começar, tínhamos que falar umas palavras de ordem que eram assim:

Mestre: Boca de Forno!

Todos: Forno!

Mestre: O que o Mestre mandar...

Todos: Faremos todos!

Mestre: E se não fizer?

Todos: Ganharemos bolo!

Daí o Mestre inventava coisas absurdas para todos fazerem juntos, tipo “desçam até a pracinha rebolando”, “peçam dinheiro para aquele senhor”, “vá até a cozinha da sua casa e me traga um pedaço de bolo”...

Sítio do Pica-Pau Amarelo

Quase todos os dias, parávamos as brincadeiras na rua para assistir o Sítio do Pica-Pau Amarelo e Globinho, com a Paula Saldanha. Depois voltávamos pra brincar na rua e ficávamos até tarde. Lembro que eu cantava a música de abertura do Sítio assim:

Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo
Sítio do Pica-Pau amarelo
Sítio do Pica-Pau amarelo

Bonecário pano é gente, sapo gu de milho é gente
O sol nasce em tché tão belo
Sítio do Pica-Pau amarelo
Sítio do Pica-Pau amarelo

O restante da letra eu não me lembro.

Sobre o autor:

Osvaldo Piva é artista plástico e comparsa de futuros projetos artísticos em deliciosas reuniões de sexta-feira.
Estas memórias, o clima da foto acima e sua origem mineira transparecem num artista talentoso e de conversa muito boa. Para saber mais sobre seu trabalho, clique aqui.